O papel da primeira língua no desenvolvimento da escritura em segunda língua: o caso das crenças1

Bianca Walsh

A fim de discutir o lugar da primeira língua (L1) na instrução formal para escritura em segunda língua (L2), apresento uma investigação exploratória do papel da L1 nas crenças e ações de um grupo de doutorandos em áreas exatas, aprendendo inglês para escritura acadêmica. A análise é feita por meio de quatro ferramentas: observação participante, entrevistas, protocolos retrospectivos e questionários semi-estruturados.

In order to discuss the place of first language (L1) in the teaching of second language (L2) writing, I present an exploratory investigation about the role of L1 in a group of doctorate students’ beliefs and actions, learning English for academic writing. Four methodological tools were used in the investigation: participant observation, interviews, retrospective verbal protocols and questionnaires with open-ended and closed questions.

Introdução

        Podemos observar que há um número considerável de estudos a respeito do papel da L1 na aprendizagem de L222 (e.g. Upton e Thompson, 2001; Jarvis, 2001; Silva, 2003; Zuchelli, 2003). Esses estudos convergem para a definição de uma participação facilitadora da L1 cognitiva e socialmente. Especificamente, há estudos a respeito do papel da L1 desempenhado no processo de escritura33, o qual vai além de fonte de transferência (e.g. Salies, 1995; Wen e Wang, 2002; Glopper, Stevenson e van Gelderen, 2003). Igualmente, os estudos sobre escritura apontam para o caráter facilitativo da L1, por exemplo, na manipulação de idéias (Salies, 1995; Wen e Wang, 2002).
        Em contrapartida, faltam pesquisas que relacionem a atuação real da L1 com as crenças que a sustentam. Ora investiga-se as percepções dos aprendizes, ora investiga-se suas ações. Considerando que a linguagem media a relação entre cognição e expressão social, acredito que, pela análise da linguagem, podemos esclarecer a interação das ações e crenças no contexto de ensino-aprendizagem. Esta questão apresenta-se para nós, educadores de inglês como língua estrangeira, de maneira conflituosa. Saímos da academia, imbuídos de idéias afinadas com pesquisas que acreditam na benesse da língua materna, mas nos defrontamos, no exercício da profissão, com cursos de inglês (não são poucos) em que a L1 é considerada como ruído para a aprendizagem da L2.
        Na tentativa de responder a esse problema pedagógico e de preencher a lacuna nas pesquisas sobre a L1, apresento uma investigação exploratória de uma sala de aula específica, conjugando o exame do que nela se fazia (ações), do que se pensava que se fazia (percepções) e do “não-dito” (crenças) em relação a L1.

Modelos Cognitivos Idealizados: o caso das crenças

        A mente humana cria modelos cognitivos para interpretar a realidade que a cerca (Lakoff, 1987). Os Modelos Cognitivos Idealizados (MCIs) são o resultado da conjugação de experiências pessoais com experiência sociais (Lakoff, 1987). Segundo o autor, os MCIs são constituídos por estruturas proposicionais, esquemas imagéticos, projeções metafóricas e projeções metonímicas. Neste trabalho, considero que crenças são um tipo de MCI, baseada na convergência de uma definição de crenças de van Dijk (1996) com a constituição dos MCIs, proposta por Lakoff (1987). Dijk define as crenças como “blocos de construção de representações mentais, assim como unidades de pensamento e julgamento” e nos mostra que elas são representadas na forma de proposições, em uma espécie de língua cognitiva abstrata.
        No ambiente de aprendizagem de segunda língua, as crenças que interagem com o processo de aprendizagem são, em geral, aquelas referentes à natureza da língua e da aprendizagem da língua (Barcelos, 2003 p. 8). Ainda de acordo com a autora, as crenças e as ações caminham juntas, de tal forma, que não seria possível seu descolamento. Neste ponto ela ecoa a filosofia de Dewey (1933, apud Barcelos, 2003), para quem “ação é proposital e intencional” (p.28). Em função dessa interação é que o método de investigação de crenças deveria ser projetado, como nos diz a autora: “...as crenças deveriam ser inferidas não apenas do discurso dos aprendizes, mas também de suas intenções e ações” (2003, p. 28).1
        Tendo em vista que as ações em sala de aula se inter-relacionam com as crenças, podemos supor que as crenças sobre a língua e sobre a aprendizagem de língua determinarão atitudes mais ou menos bem-sucedidas na aprendizagem dessa língua. Essa visão de crenças é adotada em estudos de abordagem metacognitiva. Segundo Barcelos (2003), três são as abordagens de estudos de crenças: normativa, metacognitiva e contextual. As duas primeiras atribuem estabilidade ao sistema de crenças, e a última, instabilidade. Para este trabalho, proponho uma abordagem mista, já que acredito que as crenças atuam no monitoramento das ações (metacognitvamente), mas que também apresentam relativa estabilidade (contextualmente).

O papel das metáforas e esquemas imagéticos na constituição das crenças

        O entendimento de metáfora que adoto neste trabalho é o proposto por Lakoff (1984) como o processo de projeção entre domínios que fazem parte da modelagem cognitiva. A projeção ocorre a partir de domínios-fonte, representativos do mundo físico, para domínios-alvo, representativos de modelos cognitivos. Para Holland e Quinn (1995), a metáfora propicia compreensão, porque possibilita um “pensamento por esquemas-imagéticos” (image-schematic thought). Em outras palavras, ao capturar propriedades e informações do mundo físico, a mente está capturando esquemas-imagéticos, que orientarão a representação do objeto. A projeção metafórica e os esquemas-imagéticos constituem, portanto, os MCIs que chamamos de crenças de ensino e aprendizagem neste trabalho.
        As crenças de sala de aula emergem, de forma geral, no discurso de professores e aprendizes e, muitas vezes, especificamente, na forma de metáforas. Kramsch (2003) aventa, por exemplo, que as metáforas propiciam a veiculação de conceitos conflitantes, formadores das crenças. Um estudo que fez sobre as crenças de aprendizes de L2 demonstra o quanto as percepções deles sobre aprendizagem é paradoxal. Segundo a autora, a metáfora cria um espaço mental em que percepções aparentemente anuladoras são articuladas, o que dificilmente poderia ser feito sem este recurso.

Metacognição

        O conceito de metacognição foi inicialmente proposto em psicologia desenvolvimental para fazer referência ao conhecimento e controle do próprio pensamento (Baker e Brown, 1984). Victori (1999), usando a definição de Flavell (1979), divide metacognição em três partes: conhecimento da pessoa (person knowledge), conhecimento sobre a tarefa (task knowledge) e conhecimento estratégico (strategy knowledge).
        A primeira subdivisão, conhecimento da pessoa, diz respeito ao conhecimento sobre si mesmo ou sobre os outros como processadores da tarefa. Subdivide-se em: motivação, autoconceito e problemas de escrita. A motivação categoriza o interesse do escritor. O autoconceito agrupa a autoconcepção do escritor e o grau de confiança deste em relação a sua capacidade de escritura. A subcategoria problemas de escrita diz respeito aos problemas percebidos pelo escritor no processo de escritura.
        A hipótese de trabalho que adotamos é que a L1 fomenta um salto cognitivo do nível automático para o nível regulador. A L1 é reaproveitada na mente do aprendiz, como base primária de conhecimento similar a atual (L2). Buscamos nossa hipótese nas pesquisas reportadas e em Giacobbe (1992) e Woodall (2002). Giaccobe (1992) diz que a L1 permite que o indivíduo interaja em L2, mesmo antes da transferência começar a ocorrer.
        Uma definição de metacognição integrativa, como a proposta por Victori (1999), garantiria a atuação da L1 em vários níveis: conhecimento de pessoa, conhecimento de tarefa e conhecimento estratégico. Se a primeira língua está ativa para comparação e, possivelmente, transferência, a L1 atuaria também na construção de uma metalinguagem, quando se fala ou se pensa na escrita e no ensino em L2.

O estudo

        Trata-se de um estudo de caso de um grupo de 10 doutorandos de áreas exatas em uma universidade pública federal, aprendendo inglês para escritura acadêmica. Esse curso foi dividido em dois módulos independentes: o de português (duração de 16 horas) e o de inglês (duração de 40 horas), que veio imediatamente após o primeiro.

Participantes

        Participaram da pesquisa a pesquisadora, como professora de português e observadora participante; a professora de inglês; o diretor do curso, entrando na primeira aula para falar do curso; e os aprendizes.
        O curso iniciou com dez alunos, mas depois de duas aulas havia apenas oito, porque Carlos e Waldo4 abandonaram o curso. Uma aluna (Joana) se ausentou por quase 2 meses. O perfil dos alunos é apresentado na Tabela 1. Seis disseram-se intermediários e três, de proficiências básicas. Apenas Carlos atribui o status de avançado para sua proficiência.

Tabela 1: Informação demográfica dos alunos.
Nome
Idade
Formação Profissional
Anos de estudo em inglês*
Proficiência atribuída*
Aldo
25 – 30
Doutorando em Engenharia Civil
2 anos
Básico
Carlos
25 – 30
Doutorando em Engenharia Civil
8 anos
Avançado
Helio
mais de 35
Doutorando em Planejamento Energértico
6 a 9 meses
Intermediário
Joana
25 – 30
Doutoranda em Banco de Dados
2 anos e meio
Intermediário
Julia
25 – 30
Doutoranda em Geociências
7 anos
Intermediário
Lucia
31 – 35
Doutoranda em Engenharia Civil
3 anos
Intermediário
Nara
31 – 35
Doutoranda em Geotecnia Ambiental
5 anos
Intermediário
Rosa
25 – 30
Doutoranda em Engenharia Civil
5 meses
Básico
Vanda
25 – 30
Doutoranda em Engenharia Nuclear
2 anos
Básico
Waldo
25 – 30
Doutorando em Engenharia Civil
3 a 4 anos
Intermediário
*Os anos de estudo em inglês e a proficiência foram declarados pelos próprios alunos.

        O diretor também é professor de inglês, mas nunca lecionou inglês para escrita acadêmica. Ele não é brasileiro, mas vive no Brasil há muitos anos e dirige esta cooperativa há quase vinte anos, como prestador de serviços para o público da universidade. Ele idealizou o curso da maneira descrita, porque diz acreditar que quem escreve bem em português, o fará em inglês.
        A professora formou-se em inglês na UERJ e já vem trabalhando há uns dois anos com este curso. Tem uma experiência geral como professora de inglês de oito anos. Aprova a idéia do português como pré-requisito para seu curso, porque observou que os alunos que ela considera fracos na escritura em inglês, também o são em português.
        Minha experiência é de cinco anos lecionando inglês. Com o português, esta é a primeira experiência mais sistemática e a primeira experiência de ensino de português para discurso acadêmico.

O curso

        No módulo de português, foram trabalhadas morfologia, sintaxe, construção de texto e discursividade. Especificamente, trabalhamos modelos de resumo e artigo acadêmico (Swales, 1990). Os alunos deveriam fazer no mínimo quatro redações; suas reescrituras eram valorizadas, porque a nota incorria na versão final que apresentassem.
        A professora do módulo de inglês começou com classes de palavras, trabalhando com as mais relevantes: pronomes, conjunções e artigos. Posteriormente, trabalhou com voz passiva; redundância; paralelismo; orações relativas; ligação de idéias e conectivos; erros comuns, como infinitivo dividido e concordância; pontuação; paráfrase e resumo. Os alunos faziam e corrigiam exercícios com muita freqüência no tempo da aula. O tipo mais freqüente de exercício foi o de correção de erros em frases e textos. A professora só pediu redações a partir da décima aula.

Banco de Dados

        As ferramentas metodológicas para a análise foram: observação, com gravação em áudio de doze das vinte aulas, das quais fez-se um recorte de dez aulas (20 horas) para tratamento de dados do módulo de inglês; um recorte das entrevistas gravadas com os alunos; questionários semi-estruturados respondidos pelos alunos; e um recorte dos protocolos verbais retrospectivos a partir das redações pedidas pela professora de inglês.
        As entrevistas foram semi-estruturadas com a fala-gatilho: “Imagine que você escreverá um texto em inglês sobre a violência no Brasil, como você o faria? Descreva o seu planejamento de escrita, incluindo aquilo que você vai escrever.” Os questionários (modelo de Saliés, 1995) apresentaram perguntas abertas e fechadas sobre as percepções desses aprendizes quanto ao uso que fazem da L1 na escritura em L2. Seis alunos participaram das entrevistas e questionários, por espontânea vontade. Desses seis, quatro participaram dos protocolos, porque apenas esses fizeram redações no módulo de inglês.

A análise

        Os recortes para a análise das entrevistas, protocolos e transcrições de sala de aula foram as conversas entre alunos, entre alunos e professora ou as falas do diretor. As unidades de análise foram o tema ‘português’ (L1), o tema ‘escritura’ e o tema ‘aprendizagem/ensino de escritura’. Os temas, exceto ‘aprendizagem/ensino’, emergiram no discurso explicita ou implicitamente, isto é, em alguns momentos, eles eram nomeados e, em outros, estavam ativos por pressuposto. No discurso de sala de aula, por exemplo, o tema ‘português’ aparecia explicitamente (“o português”), ou indiretamente por pressuposto (“a maior barreira é passar para uma língua que não é nossa.”).
        Para a categorização dessas unidades, usei a Análise do Discurso como ferramenta. A análise rendeu as seguintes categorias:

1)   Conhecimento pessoal (componente da metacognição de Victori, 1999): subdividido em motivação, autoconceito e problemas na escrita (Tabela 3).
2)   Metalinguagem: reúne casos em que se fala sobre a instrução em L2 ou sobre o processo de escritura em L2 (Tabela 2).

Tabela 2: Casos de metalinguagem
Metalinguagem
Exemplos
Escrita em L2
Diretor: Escrever em L2 é muito mais difícil.
Vanda: Problema é escrever um texto que não seja português.
Prof.a: Qual a importância de publicar? É preciso escrever direito, não tem que ser um texto entediante, a maior barreira é passar para uma língua que não é nossa.
Instrução em L2
Diretor: O intuito é tentar minimizar o máximo possível a possibilidade de você escrever besteira.
Prof.a: Gente, uma coisa que a gente tem que fazê também é tentá: internalizar isso, sem traduzir a todo tempo pra nossa língua. Entendeu?
Nara: Construir as frases no jeito correto.
Vanda: Melhorar a gramática, escrever.

        Na categoria de metalinguagem, as falas caracterizaram-se pela presença da 3a pessoa, o que indicou o afastamento do objeto de que se falava (a escrita ou o curso). Além disso, o nível de abstração do discurso que constitui essa categoria foi observado pela presença de verbos no infinitivo como sujeito (“construir”, “escrever”, “melhorar”) e orações substantivas (“É preciso escrever direito...” e “O problema é escrever um texto que não seja português”).

Tabela 3: Exemplos da categoria conhecimento sobre si mesmo.
Categorias
Exemplos
Autoconceito Vanda: Eu já bloqueio já em português, mas aí vai de encontro com a pesquisa da Bia, porque tem que estruturar em português, pelo menos de início, pra depois tentá passá pro inglês, não traduzi.
Problemas na escrita Julia: Pode ser pequenininho? Para escrever alguma coisa em português já é um parto.
Waldo: Faltou vocabulário.
Nara: Faltou os corretores.
Motivação Prof.a: = falei que pode aparecê qualquer tema, então tem que tá preparado pra falar de qualquer coisa, até uma coisa que você não gosta, que não saiba.
Lucia: Então é ruim, é ruim.
Prof.a:         Z Mas você não pode se bloquear a esse ponto.

        A categoria autoconceito é sinalizada pela presença da 1a pessoa no discurso (“Eu já bloqueio...”; e “bloqueada”). A categoria de problemas na escrita é marcada pelo uso da 3a pessoa assim como na metalinguagem, mas diferencia-se desta pelo particularismo. Os verbos no passado sinalizam um evento particular (“faltou”). A categoria motivação diferencia-se das outras, porque inclui léxico e sinais paralingüísticos sinalizadores de emoção (“resmunga”, “não gosta” e “é ruim”).

Resultados

        O aparecimento das crenças em todos os momentos de aferição de dados na pesquisa parece ser uma evidência de o quanto elas orientam o processo de aprendizagem (Barcelos, 2003; Palla, 2004; Leite, 2003). Para fins de uma visualização abstrata de como as crenças neste espaço de aprendizagem representavam a realidade dos participantes, propus dois MCIs por elas constituídos, conforme ilustra a Figura 1.
        A representação da escritura em L2 dos participantes foi marcada pela dificuldade, pela visão estrutural da língua e pela participação da L1. A dificuldade esteve presente em todo o percurso desses aprendizes, diretamente ou através de metáforas.
        Um esquema-imagético predominante no discurso desses alunos foi o de escritura como percurso, projetado pelos campos semânticos da dor, do terreno desconhecido e dos obstáculos: “...à forma de escrevê foi ... foi muito doloroso...”(Rosa); “...tá trabalhando com um com uma, dentro de um ambiente que não é o teu que você tá se guiando, seria o inglês...”(Rosa); “È preciso escrever direito, não tem que ser um texto entediante, a maior barreira é passar para uma língua que não é nossa” (Professora).

Figura 1: Os MCIs mais gerais da escritura e ensino da escritura em L2

        Os aprendizes transferiram a dificuldade que reiteradamente disseram já ter com a escritura em L1. No entanto, em alguns momentos, representam uma relação com a L1 menos negativa. As metáforas da L1 como língua “mãe” e “mater” (no discurso de Rosa e Lucia) representam essa língua como a em que operam com conforto e segurança. Esse é o primeiro paradoxo encontrado para a participação da L1 na escritura em L2.
        Outro esquema-imagético que identificou o papel da L1 foi o de fluxo. Por exemplo, para Rosa a L1 pré-existe à L2 na escritura de L2, consubstanciando a crença de L2 como “paráfrase de L1”. Para Aldo e para Helio, a L1 funciona para o pensamento e a L2 para a escrita, o que sinaliza a crença de uma “tradução mental”. Para Julia, a L1 serve para iniciar o pensamento que precede a redação; segundo ela serve para “pegar no tranco”. Nessa metáfora, a escritura em L2 é vista como um processo maquinário e a L1 participaria no momento da ignição desse processo.
        As crenças que constituem o MCI de ensino de escritura em L2 (Figura 1), de forma geral, referem-se a uma visão estrutural da língua, ao banimento da L1 e à repetição da experiência da instrução que tiveram em L1.
        A metáfora do “ajustar”, como se o aprendiz fosse uma máquina com defeitos, projeta uma visão de aprendizagem em que o aluno é passivo e o professor é corretor de problemas. “Tem uma duração maior, porque tem mais coisas para ver, para ajustar” (Diretor). Ao usar a metáfora da “viagem” para representar seu curso, a professora coloca-se como guia, e os lugares a serem visitados são as gramáticas e os dicionários: “Vamos começar por uma viagem pela gramática. O que vai ajudar... um bom dicionário, uma boa gramática”. O segundo paradoxo, o da presença/ausência da L1, (repetição da experiência de instrução em L1 vs. banimento da L1), perpassou todo o curso no discurso de todos os participantes
        As perguntas fechadas do questionário apontam para a percepção geral dos aprendizes de que usam a L1 nas atividades cognitivas anteriores à geração do texto. Da mesma forma, suas ações aferidas pelos protocolos retrospectivos demonstram que usam a L1 na manipulação de conteúdo e menos na manipulação do texto (replicando Saliés, 1995 e Wen e Wang, 2002). Cinco dos seis alunos declararam escrever diretamente em inglês, apesar de a L1 aparecer na revisão simultânea à geração do texto nos protocolos. Em sala de aula, os alunos e professora usaram a L1 estrategicamente como fonte de consulta, de testagem de hipóteses e de comparação, constantemente.

Conclusões

        Poderíamos sugerir que o papel da L1 no desenvolvimento da escritura em L2 é metacognitivo. A L1 participa nos dois aspectos da definição de Baker e Brown (1984) de metacognição: conhecimento do conhecimento e monitoramento do conhecimento.
        Ainda, percebemos dois paradoxos em relação à L1 “dificuldade x facilidade” e “presença x ausência” que apontam para a fragilidade das crenças que a veiculam. Há coerência entre as ações e as percepções dos aprendizes (obtidas no questionário), porque acreditam usar a L1 para a geração e a manipulação de idéias e não para a geração de textos; o que, de fato, fazem. No entanto, o não-dito (crenças) revelou uma relação dos aprendizes e professora com a L1 mais conflitante do que parecia apenas pela a análise de suas percepções e ações, ou seja, do que acham que fazem e do que de fato fazem.
        Quanto ao problema pedagógico introdutório, poderíamos concluir que a L1 ocupa um lugar relevante no ensino de L2. Sugerimos, baseados nos resultados deste trabalho e da literatura, dois passos para os educadores de língua estrangeira, especificamente, para os de inglês. Primeiro, nós educadores deveríamos repensar nossa relação com a língua materna, abandonando crenças como as de que a L1 seria um ruído para a aprendizagem de L2. Segundo, deveríamos adotar uma prática pedagógica que aproveitasse a L1 como recurso que é e que conscientizasse aprendizes deste valor. Desta forma, propiciaríamos um contexto de sala de aula de língua estrangeira menos conflitante e mais propício à participação estratégica da L1 em uma aprendizagem de L2 mais autônoma.

Bianca Walsh graduou-se em Letras Português-Inglês na UFRJ em 2003, obteve o grau de Mestre em Letras em 2006 na Puc-Rio. Leciona inglês e português para público acadêmico no CT da UFRJ. Interessa-se por inglês para fins acadêmicos, escritura acadêmica e crenças no contexto de ensino/aprendizagem.
e-mail: biancaw@brfree.com.br

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Notas

1 Este trabalho é um recorte de minha dissertação de mestrado, intitulada O papel da primeira língua no desenvolvimento da escritura em segunda língua: Uma investigação das ações pedagógicas e crenças de um grupo de aprendizes na sala de inglês para fins acadêmicos (Walsh, 2006).
2 Adoto a sigla L2 para inglês como língua estrangeira, neutralizando a diferença entre segunda língua e língua estrangeira. Essa neutralização vem sido adotada por alguns autores, talvez pela praticidade da sigla, (Wen e Wang, 2002; Glopper, Stevenson e van Gelderen, 2003). Há autores que não fazem distinção, porque acreditam não haver pesquisas conclusivas a respeito da diferença entre as duas (Kato, 1993 e Felix, 1987).
3 Uso o termo escritura, porque enfatizo a visão de processo de escritura, não de texto como produto final.
4 Todos os nomes dos aprendizes são fictícios.